Vhils - Lisboeta do Ano por João Pinharanda | Fundação EDP

Vhils - Lisboeta do Ano por João Pinharanda


Vhils ama as cidades: a sua velocidade e a sua preguiça, o tempo que elas levam a passar ou como passam depressa, o modo como as habitamos. E Vhils não se esquece dos que habitam as cidades quando olha para as casas e para as ruas. Como os apaixonados marcam o seu nome nas árvores dos jardins ele escava as paredes procurando, na memória das casas e dos muros, a vida dos que vivem nas cidades. Lisboa, tem lugar de Musa especial na sua obra: viu-a de longe vindo a banda sul do Tejo e nela viveu, adolescente, as aventuras clandestinas de qualquer street artist, grafitter desenhando imagens, escrevendo palavras, procurando um sentido para si e para o que o rodeava. É nela que acumula o maior número de intervenções e os seus trabalhos estabelecem um padrão que coloca Lisboa na rota de um turismo temático global e em crescimento.

Em 2013 conheci o seu atelier do Bairro de Santos, em Lisboa.

É o nosso primeiro encontro depois de alguns anos sem nos vermos. Entre o convite para integrar o núcleo de artistas que inauguraram o Museu de Arte Contemporânea de Elvas-Colecção António Cachola, exatamente há sete anos, e este ano de 2014 Alexandre Farto (este é o seu nome no registo civil) já deu várias voltas à Terra. Na altura, tinha 20 anos e só ele sabia o futuro que queria para si. Em Elvas, trabalhou silencioso e concentrado, como hoje; e riu-se, como hoje ainda se ri; ajudou, como hoje também ajuda, os colegas que com ele iam construindo outras peças no espaço circular do Paiol de Nª Srª da Conceição. Pintou uma cena de guerra e violência urbana na parede exterior e, no interior, montou uma instalação que remetia para o mesmo universo. Não era uma exaltação, nem um fascínio pela estética da força: era uma denúncia dos desastres da guerra.

Alexandre abre-me a porta ondulada de uma oficina. Até aqui, tudo o que eu esperava. Também está mais velho, claro, mas (primeira surpresa!), parece mais novo. Explico: o peso da barba é compensado pela frequência com repete e demora o sorriso. Mas talvez o encontre mais nervoso: para além do sorriso, tudo o resto se passa muito depressa no seu corpo e nas suas palavras - é que agora tem muitas coisas para mostrar. E esta é a segunda surpresa: como é que num espaço tão pequeno cabem tantas coisas e como é que com uma equipa tão pequena consegue fazer tantas coisas? Ao longo de toda uma parede amontoam-se posters retirados das paredes, parece lixo, mas não é - ou deixou de o ser. Ao longo de outra parede acumulam-se portas e portadas retiradas de casas em demolição. Há ainda chapas de metal intervencionadas com ácidos de modo a formar imagens e frases. Algumas portas estão escavadas com goivas, outras, queimadas com laser; e nascem rostos e padrões decorativos nesses suportes inesperados. Ao fundo, algumas (muitas) obras acabadas esperam ordem de saída para exposições ou, simplesmente, para serem refeitas. De facto, as obras de Farto nascem de muitas ideias, que vai deitando fora, que vai adaptando, que vai negando e superando: o que rejeita agora regressa depois; o que não pode concretizar logo espera o tempo que for necessário para nascer de novo. Num corredor, algumas novas experiências escultóricas com cimentos ou experiências mais antigas com resinas. Nestas, os cartazes urbanos são fixados num invólucro translúcido, como corpos urbanos preservados num meio neutro para memória futura. Um pouco recuada em relação a esse corredor, uma sala de trabalho técnico e administrativo: os seus colaboradores mais próximos estão aí, pensam o design dos catálogos e do site, gerem os convites e viagens, calculam os cortes laser a aplicar às esferovites com as quais constrói os seus rostos-maquetas de cidades.

 

Não é trocadilho dizermos que os rostos são a face mais visível da sua arte:

rostos humanos nos rostos das casas e dos muros; cidades que ganham o rosto dos seus habitantes ou que reproduzem rostos que vêm do outro lado do Mundo. Na exposição que acabámos por fazer, no verão deste ano no Museu de Eletricidade, em Lisboa, havia um grande mapa-mundo assinalando os pontos fundamentais das suas intervenções fora de Portugal. Praticamente não havia um fuso horário onde o seu nome não estivesse inscrito. Por vezes os pontos indicativos caiam em pleno Oceano, íamos ver e era uma fachada que tinha escavado em Honolulu, no Hawai... Famosas foram as suas intervenções numa favela do Rio de Janeiro e num bairro pobre em Xangai. Aí, ficou claro o projeto de intervenção social de Vhils: trabalhando sobre bairros cujos habitantes estavam na eminência de ser despejados para darem lugar aos beneficiários de projetos imobiliários de alto custo, colocar nas paredes, em grande escala, os rostos dos que iam ser sacrificados foi uma forma de denúncia, mobilização da opinião pública e resistência pacífica.

Uma das questões que mais discutimos foi a adaptação desta arte, de escala urbana e vocação comunicativa imediata, que o suporte, os locais e tempos e os públicos urbanos exigem, para o interior de um Museu, com menores dimensões, materiais de construção muito diversos dos de uma rua e públicos que se demoram perante as obras, que as contemplam, em vez de simplesmente passarem por elas. Vhils conseguiu vencer o desafio: recriou a velocidade da rua através da imagem em movimento e do som, criou a escala monumental numa maqueta de esferovite (tão grande que tínhamos que subir 10 m para a abrangermos na totalidade), concebeu um circuito "quase"-urbano apresentando em cada espaço uma técnica diversa de trabalho. O modo como dos cartazes políticos e publicitários (sobrepostos por meses e anos de colagens) podem nascer rostos (cortados a laser e revelando diferentes camadas de intensas cores) e como esses rostos podem ser memória dos diferentes tempos da cidade e ser tão eficazes como os enormes rostos que também escava nas paredes urbanas é a medida mais certeira dessa capacidade que Vhils provou ter de dizer o mesmo com outros meios, sem de deixar domesticar pelo Museu.

A exposição terminava, com uma carruagem de metropolitano (5 metros de comprimento e 4 toneladas de peso) anulada por uma uniforme tinta branca e por um processo de corte que a fragmentava em centenas de pequenas peças suspensas. Era a mais recente e a mais inovadora das suas peças e dava mote à exposição (Dissection/Dissecção), simulando uma operação de observação e análise do corpo urbano por excelência (a carruagem assegura as ligações na cidade e entre esta e os seus subúrbios). Ao mesmo tempo, era um regresso às origens do seu trabalho e ao nascimento da sua consciência urbana. Gostava de o ter conhecido, adolescente, a pintar carruagens, noite fora, evitando os seguranças e os polícias, ensaiando um modo de intervenção pública que ele diz ter aprendido, no Seixal (onde nasceu e ainda vive), olhando os murais políticos de 1974 que resistiam ao tempo, envelhecendo nas suas cores e mensagens, percebendo como iam sendo substituídos por cartazes de publicitários, pensando como resgatar tudo isso projetando-o num futuro contemporâneo.

 

Não se percebe imediatamente que Vhils é uma personalidade especial.

Talvez esse seja precisamente o segredo da sua da liderança e magnetismo. Tudo acontece naturalmente - ou ele faz com que tudo aconteça naturalmente em seu redor. De repente, percebemos que é amigo dos mais significativos músicos do complexo universo da música urbana contemporânea com os quais colabora e que com ele colaboram e que agrega artistas do mesmo campo de intervenção trabalhando com todos (uma plataforma comum, sob o nome de Underdogs reúne muitos deles). Olhamos para ele, madrugada dentro, em cima de uma grua, iluminado por holofotes colocados no chão, ajudado pelos seus assistentes, seguindo o desenho das linhas de corte com lâminas (para a pele dura dos cartazes) ou martelos pneumáticos para os rebocos e cimentos das empenas. Ainda há pouco jantávamos bifes encharcados em molho numa cervejaria e falávamos do Mundo onde ele se vai tornando uma referência. Não há nessa conversa nenhuma arrogância, nenhuma vaidade exposta: há uma sobreposição de retratos onde é difícil separar Alexandre Farto e Vhils, porque são um único. Ele justifica o seu tag dizendo que é a assinatura mais rápida que pôde encontrar, diz que pode ser escrita sem levantar a mão. Não sei se acredite: ele há tantas outras letras que podem ser desenhadas desse modo. Afinal é mesmo capaz de haver múltiplas camadas neste retrato urbano.

17 Dez 2014